(Publicado previamente no Pórtico de Epicteto)
Um dos pontos menos compreendidos do estoicismo se refere à clássica distinção entre coisas boas e más e indiferentes. Como citado por Diógenes Laércio e Ário Dídimo, os estoicos dividem as coisas todas do mundo em boas, más e indiferentes. Boas e más são respectivamente as virtudes e os vícios. Indiferentes, todas as demais. Isso sempre causa estranheza ao senso comum, pois entre as indiferentes são colocadas coisas que geralmente se pensam boas (como riqueza, saúde, beleza, sucesso) e más (como pobreza, doença, feiura e fracasso). Bertand Russel, em sua História da Filosofia, dá voz a essa incompreensão:
Para uma mente moderna, é difícil sentir-se entusiasmado pela vida virtuosa se nada puder se alcançada por meio dela. Nós admiramos um médico que arrisca sua vida em uma epidemia de praga porque pensamos que a doença é um mal e esperamos diminuir sua frequência. Mas se a doença não é um mal, o médico pode também permanecer confortavelmente em sua casa. (Bertrand Russel, The history of western philosophy, p. 255.)
A raiz da distinção estoica está no diálogo Eutidemo, de Platão. Nesse diálogo, Sócrates observa que os bens reconhecidos pelos mortais se transformam em males se administrados por imprudentes. Apresentarei o argumento de Sócrates no Eutidemo de um modo didático. Pensem em uma lista de bens. Suponho que nela incluirão coisas como a riqueza, a saúde, o poder, um elevado status social, o prazer, a vida. Mas considerem o seguinte: a riqueza na mão de um tolo se torna inútil ou destrutiva; e se pode ser má, não é em si mesma nem boa nem má. A saúde também nem sempre é um bem, já que seu contrário, a doença, pode por vezes levar o homem a valorizar sua vida e tomar ciência de si mesmo. O poder já foi ocasião para a ruína e a destruição de muitos. Um elevado status social pode concorrer para tornar o homem arrogante e cercá-lo de falsos amigos. O prazer também nem sempre é um bem, pois há prazeres que escravizam e destroem os homens. Seu contrário, a dor, nem sempre é um mal, pois às vezes é um meio para se obter algo maior (como o atleta que se submete a um treinamento extenuante para melhorar seu desempenho). E a vida também não é em si mesma um bem ou um mal, pois há ocasiões em que a morte é opção melhor que a vida (como no caso de alguém que, para continuar vivendo, tem que trair seus princípios, sujeitar-se a indignidades, ou compactuar com crimes). Somente a sabedoria (sophía) propicia a verdadeira boa fortuna, que consiste em estar ao abrigo do que está por vir, porque apenas ela transforma o que acontece aos mortais em bens. A sabedoria possibilita ao homem desfrutar sua saúde e ser perseverante na doença, fazer bom uso tanto da beleza física quanto da feiura, não ver no status social um mérito ou um demérito seu ou dos outros, usufruir o prazer e suportar a dor quando for preciso. Enfim, com a sabedoria o homem pode bem viver e bem morrer.
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