Durante o banquete, na casa de Helvídio Prisco[1], Trásea Peto[2] e Musônio Rufo[3] conversavam animadamente, taças de vinho à mão. Era a terceira vigília[4], em breve o dia iria raiar, e a Aurora de róseos dedos coloriria o firmamento. O jovem Epicteto[5] já se sentava ao chão do triclínio[6], sonolento, quando um movimento de pernas femininas marmóreas e esguias cruzando a porta que dava para o peristilo[7] lhe chamou atenção.
Encantou-se com o desenho dos pés da moça, de cerca de quinze anos, que passara silenciosamente, na ponta dos pés, pela porta. ‘Zeus demorou-se a desenhar tais pernas, pensou consigo’. Não resistindo e nem querendo resistir à persuasão da beleza feminina que se mostrava aos seus olhos àquela hora, Epicteto levantou-se e foi procurar saber quem era. Passando pela porta de um dos cubículos, entreviu nas trevas novamente aqueles pés ao chão. A moça agachara-se, tentando permanecer oculta.
Epicteto entrou no cubículo. Ato contínuo, a menina se levantou e desferiu um poderoso soco em sua cara. Epicteto caiu ao chão desfalecido.
***
Epicteto despertou aos poucos. Era já a primeira hora[8]. A claridade do dia entrava pela janela aberta. Epicteto se descobriu no chão. Levantou a cabeça, a visão turva ainda, e viu-se à frente de um leito. Sobre o leito, foi-se pouco a pouco tornando nítida a imagem da moça que vira antes. Vestia uma túnica apenas e tinha as longas pernas à mostra. Mexia os dedos dos pés como o faz um gato distendendo as patas. E olhava para ele muito seriamente. Entre as mãos trazia um pugio[9], equilibrando-o entre as palmas, com a ponta afiada afundando-se na mão esquerda.
‘Que queres de mim, escravo?’, disse ela[10].
‘Quem és?’, perguntou Epicteto.
‘Sou Gratilla[11], aluna de seu mestre, Musônio.’
Ah sim, pensou Epicteto, Musônio lecionava aulas particulares para moças. Falava frequentemente sobre isso. Que homens e mulheres são iguais quanto ao valor e à virtude[12], e que o verdadeiro casamento deve ser uma amizade entre iguais[13].
‘Já bem vejo’, disse Epicteto, ‘os benefícios de uma educação filosófica’. E conferiu com a língua os dentes da boca, para ver se perdera algum com o murro. Não. Todos estavam ainda lá.
Gratilla permaneceu como estava, olhando-o como um gato observa um estranho, imóvel, mas atenta a cada movimento, e em silêncio.
‘Como sabes que sou aluno de Musônio’, disse Epicteto.
Ela nada disse.
‘E que benefício obtiveste do ensino da filosofia?’, perguntou Epicteto, tentando quebrar o silêncio.
E ela, muito séria, lhe respondeu: ‘Eliminou meu medo da morte’. Disse isso e calou-se. Seu olhar desviou-se então para a paisagem lá fora. Pássaros cantavam na algazarra matutina. A moça parecia a ponto de pular a janela. ‘Selvagem’, pensou Epicteto, ‘Ela é bela porque é selvagem. A filosofia parece lhe ter devolvido ao estado de natureza. Ou terá sempre sido sempre assim?’
‘E que argumentos te tiraram o medo da morte?’, voltou à carga Epicteto.
Após uma breve pausa, Gratilla respondeu:
‘A morte não é um mal, mas sinal da providência divina. Imagina se fôssemos eternos. Alguém poderia realmente nos escravizar para sempre. Alguém poderia assim nos constranger a segui-lo, a obedecê-lo por toda a eternidade. Mas não, Zeus deixou-nos a porta aberta. Podemos a qualquer momento atravessá-la. A morte é o signo de nossa liberdade. Graças a ela somos realmente livres, e ninguém pode efetivamente nos escravizar’.
Epicteto se descobriu confuso. ‘Que argumento é esse? Já li muitos livros dos estoicos[14], mas nunca me deparei com esse’. Vasculhou a memória e nada descobriu sobre a origem da tese. Finalmente vencido, voltou o olhar a Gratilla, que agora cruzara as pernas sobre o leito e olhava o teto com desdém, e perguntou de que filósofo estoico era aquela ideia.
Agora, a luz do dia banhava a face, as pernas e o corpo de Gratilla, que já se via pela túnica finíssima. A beleza tão cativante. A beleza divina. ‘Como pode ser tão linda?’, perguntou Epicteto a si mesmo, ‘Como pode ter se mantido tão selvagem e tão linda?’
Gratilla levantou-se subitamente do leito e, pondo já uma perna para fora da janela, respondeu secamente, ‘Eu mesma o concebi’. E lançou-se num salto para o jardim, como Diana[15], desaparecendo das vistas de Epicteto.
(por Aldo Dinucci)
* Na imagem destacada, Sweet dreams, pintura em óleo sobre tela de de J. W. Godward (1904).
[1] Senador romano e estoico.
[2] Senador romano e estoico.
[3] Estoico romano e professor de Epicteto.
[4] A noite era dividida pelos romanos em quatro vigílias.
[5] Nessa época com cerca de 35 anos.
[6] Sala de jantar das casas romanas.
[7] Pátio interno rodeado de colunas das casas romanas.
[8] Que marcava o amanhecer.
[9] Adaga romana (em grego, encheiridion).
[10] Nesta época, Epicteto ainda era efetivamente escravo.
[11] Quanto à sua atuação política da estoica Gratilla, vejam: https://socientifica.com.br/2019/09/11/gratilla-e-sua-amiga-mulheres-estoicas-romanas-desafiando-o-imperador-domiciano/
[12] Quanto a isso, Vejam as diatribes 3 e 4 de Musônio.
[13] Quanto a isso, vejam a diatribe 13 de Musônio.
[14] Epicteto jamais se declarou estoico, mas se refere a eles na terceira pessoa.
[15] Diana caçadora, Senhora dos Carvalhos, a Deusa Estrangeira, que protege os bosques e as florestas intocadas.